16 de agosto de 2010

“Velhos tempos, belos dias”




“A mesma praça, o mesmo banco, as mesmas flores e o mesmo jardim...” Sim, a música é antiga. Se fossem pesquisar, veriam que é da década de setenta, do século XX (Eu acho...). Deus, como parece distante. Nossa Senhora, como está pertinho agora, diante de mim. 31 anos. Neste ano faz trinta e um anos que fui ao show do Ronie Von, no ginásio do SESC – lotadasso de adolescentes como eu, gritando histéricas pelo ídolo. Eu não estava assim excitada. Mal falava diante de tantas surpresas. Lembro que só olhava. E ouvia. Atentava para tentar compreender o que ocorria ali. Ele usava uma camisa de cetim branca, um cravo vermelho na lapela do paletó que tirou ante os gritos da galera. Momento mágico foi aquele. Mágico porque eu estava lá e nem sabia que estaria. Minhas amigas, com mais posse, compraram ingressos com antecedência enquanto o meu chegou às minhas mãos uma hora antes, pelas mãos de meu irmão, que os ganhara e resolveu levar a mim, já que o pai da namorada não permitira. Sorte a minha.
Nem vi minhas amigas. Elas foram mais cedo, pegaram os melhores lugares. Eu fiquei bem longe mas para mim era indiferente: eu estava ali, ouvia aquele barulho forte, que mexia com meus nervos e via aquele artista de carne, osso e pescoço no mesmo espaço que eu, cantando, me deslumbrando. Como eram lindos seus dentes, seu sorriso, tudo à sua volta. Como eu via encantador o mundo daquela gente toda, vivendo aqueles momentos, como eu me via ali, tão abstraída de minha própria vida pois aquela, com certeza, era uma vivência que eu jamais vira ou imaginara. Quando ele cantou “Love me Tander” em homenagem ao Elvis que havia sido assassinado há um mês, eu chorei. Ele também. E fomos todos naquela hora, a platéia inteira junto dele e do morto, um só.
De infância pobre, um ingresso como esses só ganhado mesmo. Também foi assim quando fui ao teatro pela primeira vez. Também eram assim as roupas que eu usava: a maioria delas, ganhava da prima que crescia mais do que eu e tinha até TV em casa. (Um dia ainda vou escrever sobre a experiência de ter visto a Pantera Cor-de- Rosa colorida pela primeira vez!) Maçã eu comia quando ia com minha mãe à cidade - era como ela chamava o centro de Florianópolis - e tinha que escolher entre a verde e a vermelha. Escolha complicada. Eu gostava tanto das duas. Maionese na minha casa, só aos domingos. Sobremesa também. O lanche que eu levava para a escola, era pão feito em casa com o que tivesse. No meu aniversário era legal: eu ganhava dinheiro para comprar no barzinho uma pepsi de garrafa. Dúvida cruel: eu também gostava de mirinda. Acompanhava esse refrigerante uma pipoca e a doce era a minha preferida embora o cheiro da salgada jamais tenha saído de minha memória.
A boneca da vez era a Susi. O sonho de ganhar uma era acalentado a cada Natal. Um dia ela chegou. Fora de uma prima distante, que possuía muitas e não lhe faria falta aquela que a mãe dela, minha madrinha, me deu de tanto que a segurei quando os fomos visitar em Joinville. Filha de costureira, aprendi a fazer roupas lindas para a minha Susi. Vestidos de noiva eram os meus preferidos, com véus longos que eu prendia na cabeça dela com alfinetes surrupiados de minha mãe. E pequenas flores que eu mesma fazia, com minhas mãozinhas magras. Sobrevivi a tantos quereres sem dor e não guardo trauma por não ter tido muitos bens que outras crianças de minha idade tiveram. Nas minhas recordações, há muitas presenças alegres, bem mais do que tristes, podem apostar.
Hoje me vejo mais velha. Meus filhos cresceram num mundo mais fácil para se viver. Sempre tiveram o que lhes pude oferecer – nada muito valioso, nada paupérrimo também e tudo o que lhes dei foi a custa de muito trabalho. Conhecem teatro, freqüentam cinema, nunca lhes faltaram livros – objeto de decoração na estante da minha casa em criança, e raros! A mais velha quis ser bailarina, o do meio aprendeu um pouco de judô, ambos gostaram por um tempo de música e aprenderam a tocar piano e teclado. O mais jovem faz inglês e passa horas diante de um computador “vivendo” um ambiente esquisito, tão diferente do que foi o meu.
Entendo que são felizes no mundo deles e que a tecnologia vem se desenvolvendo para ajudar o homem a ser mais independente, porém sempre me pergunto: o que será dos meus netos neste mundo individualista e frio das telas dos computadores, dos homens mais calculistas, competitivos?
Pulo aqui as fases tantas que foram vividas em 31 anos. Não é plausível para uma crônica listar assuntos tão variados mas, quero lançar um questionamento simples: será que nossos adolescentes e crianças lembrarão 31 anos depois do primeiro show que foram, do que sentiram, do que choraram? Será que lembrarão de algum brinquedo especial nesse lugar de vivências em que tudo quebra em dois dias e onde tudo perde a graça tão depressa? Na era do Enter e do Del, de que recordarão meus netos? Jovem eu escrevia em cadernos minhas primeiras poesias e as tenho até hoje, lutando anos contra baratas, fungos, traças, mudanças. Pobres cadernos furados que guardam minhas palavras e pensamentos. Fedem a tempo, dizem os mais tenros. Cheiram saudade, afirmo com certa meiguice. Hoje ainda registro em papel escrito as maluquices que escrevo. É minha letra, gente! Minha caligrafia faz parte da história da minha vida.
O computador é traiçoeiro. Os vírus matam os textos e as construções de cada ser e, pior: os mais jovens não dão bola. Faz-se outro, compra-se outro, esquece-se. É a vida! Eu discordo. A vida é o que se registra e se guarda para provarmos que existimos, que passamos por aqui. A vida é composta por retratos em papel, por folhas e canetas, por elementos simples que estão sendo deixados de lado em prol do que chamam modernidade. 31 anos depois do Ronie Von e da morte de Elvis, “eu me lembro com saudade o tempo que passou, tempo que passou depressa mas em mim deixou, jovens tardes de domingo, tantas alegrias, velhos tempos, belos dias...”.
É lógico que não posso mais voltar àquela praça. Ali existe hoje um prédio. É óbvio que não vou obstruir o progresso em nome de meu saudosismo. É claro que não pretendo envelhecer numa cadeira de balanço sofrendo pelo que mudou, mas uma coisa quero: que as pessoas valorizem mais o ser do que o ter, que um beijo seja mais importante do que um jogo novo, que um livro seja mais interessante do que um resumo pego na Internet no domingo à noite para a prova de segunda.
Não resumam suas vidas. Cantem mais as boas músicas, pesquisem mais, conheçam a história de seus pais, conversem com os mais velhos, utilizem mais canetas do que CDs, montem álbuns com fotografias - não no orkut – sejam mais gente do que robôs e um dia, espero, nos encontrarmos para lembrar deste tempo, o de agora, em que nossas vidas, através dessa crônica se cruzaram e tocaram seus corações. “A gente vai crescendo, vai crescendo e o tempo passa e nunca esquece a felicidade que encontrou. Eu sempre vou lembrar daquele banco lá da praça...” Por onde andará o Ronie Von? Se alguém souber, comente!

P.S – Esta crônica foi publicada em 2008, logo que o blog nasceu. Publico-a hoje outra vez para que meus novos leitores conheçam.

14 de agosto de 2010

Permanência


(Permanecer: demorar-se; ficar. Continuar a ser, conservar-se. Continuar existindo, perdurar, persistir)

Foi numa noite da primavera de 2002, novembro. 13. O li e fiquei extasiada, tanto que anotei no livro – “como ficar indiferente a um poema assim¿”
Hoje reabro o livro e a mesma sensação de beleza me toma. Quase oito anos se passaram desde a primeira leitura e, é claro, não sou a mesma daquele tempo. Entretanto, algo ficou em mim daquela que fui. Se assim não o fosse, que motivo teria eu para escrever hoje¿
Fica o texto, não para ser interpretado. Como disse Quintana, “o poema já é uma interpretação.”

XII
Vou indo, caudalosa
Recortando de mim
Inúmeras palavras.
Vou indo, recortando
Alguns textos antigos
Onde a faca finíssima
Sublinhava
As legendas políticas
E um punhal incisivo
Apunhalava
Um corpo amolecido
O olho aberto, uma bota
Pontiaguda
entrando no teu peito.
Os meus olhos te olhavam
Como de certo o Cristo
Te olhou, piedade
Compaixão infinita
Ah, meu amigo
Que límpida paixão
Que divina vontade
Fervor feito de lava
Fogo sobre a tua fronte
Tanto amor
E não te deram nada.
Deram-te sim
Ferocidade, grito
E sobre o corpo
Chagas
E mãos enormes, garras
Te levando o rosto
E inúmeras palavras
Tão inúteis na noite.
Diziam que adolescência
Moldou a tua idéia
Que eras como um menino
De encantada imprudência
Loucura caminhares
Na trilha da floresta
Sem luminosa armadura.
Mas eu, poeta, vou indo
Caudalosa
Recortando as palavras
Tão inúteis
E os meus olhos de treva
Vão te olhando
E te guardo no peito
Intenso, aberto
Colado a mim
Homem-Amor
Inteiro permanência
No todo despedaçado
Do poeta.
(Hilda Hilst)

Roseli. 14 de agosto de 2010

11 de agosto de 2010

Saudade





“O próximo instante é feito por mim? Ou se faz sozinho?

(Clarice Lispector)

Nada como parar para refletir em momentos de agonia suprema, neste inverno. Grave ironia! Parar para pensar já é algo inusitado, afinal, pensamos o tempo todo. Em tudo, só não nos damos conta. Lembranças, ideias, inovações do espírito, loucuras da alma, trivialidades estão sempre conosco. Nós é que não damos oportunidades para que venham à luz o tempo inteiro, até porque nosso tempo é sempre uma metade – metade sou gente comum que trabalha, luta, corre e tenta vencer o cansaço. Outra metade, subjetividade, afetos, recordações, vontades não consentidas, mistérios.
E a vida, Senhor dos mundos? “E a vida o que é, diga lá, meu irmão!” Pergunta sem resposta, Gonzaguinha!
Assim também pensar no que se foi nem sempre nos dá respostas. Muito mais indagações, porém é necessário prosseguir. Há caminhos, escolhas, muitas mortes entre elas, mas vamos parar tudo e enfiar a cara no travesseiro, entrar na concha e fingir-se de morto? Não dá. Há muito mais à nossa volta nos chamando a agir do que a estagnar-se. Por mais que estejamos meio mortos por dentro, sempre haverá quem precise do nosso contentamento exterior.
O passado, nossas dores, os amores que se foram, por exemplo, nos constituem, fazem-nos. Amar é tornar-se, ultrapassar-se e saber-se vivo, ainda que este amor tenha ficado na lembrança, numa saudade dolorida, silenciosa e secreta. Quem amou, viveu. Quem perdeu ou deixou perder-se, sofre, mas leva consigo a chama de uma vela acesa – a luz intensa daquilo que experienciou. Somos lembrança constante e isso é vida também!
Guardo a lembrança de um amor bonito e é esse amor que me chama agora à escrita dessas linhas. Foi vivido e vívido, sonhado e realizado, subjetivo e concreto. Fez-se em histórias, mimos, aconchegos. Multiplicou-se em afetos, como flores coloridas num canteiro interior. Houve espinhos também? Sim. Não seria tão perfeito se os empecilhos não surgissem. Se não sabem, disso também é feita a vida – de pedras e de pétalas no caminho.
O meu amor é o que guardo dele com a pureza de minha alma e não posso acusar a vida porque não houve o tal “felizes para sempre”. Vou xingar o destino e desistir do que há por vir? E alguém aí sabe me dizer qual é o futuro e o que ele nos trará? Indagações apenas...
O que me move hoje, talvez seja o frio, este inverno, as recordações e um cansaço natural de pensar em tantas (im) possibilidades. Aliadas à sensibilidade, as palavras chegaram. Sim, elas nos pegam de surpresa às vezes, nos tocam, ferem, rodopiam à nossa volta, pedem passagem e dominam, tanto quanto encantam e acalentam. Hoje sou apenas saudade, essa palavra bonita que dói. Eu não queria pensar nela, nem em nada. Queria apenas adormecer, mas aquela vela acesa está aqui, bem aqui, dentro de mim e eu não consigo parar de olhar para ela, ainda que somente eu a perceba.

Saudade