17 de outubro de 2009

Uma Rosa, com amor.

Uma Rosa, com amor।


Talvez a morte tenha mais segredos
para nos revelar que a vida.’

Fleubert

“Tudo o que sei é que devo morrer em breve; mas o que mais ignoro é essa mesma morte, que não saberei evitar.” Assim escreveu Blaise Pascal. Quintana, o poeta da ternura deixou dito sobre as mil mortes que vivemos, numa frase de um poema canônico: “Da vez primeira em que me assassinaram, perdi o jeito de sorrir que eu tinha...”. E nós, pobres e medíocres escritores de cozinha, que diríamos sobre a morte nossa, essa “indesejada das gentes”¿
Estava aqui pensando sobre as tantas vezes que morremos em vida. A morte nossa vem a cada dia. Quanto mais se vive a vida, mas se avança para ela, afinal. No entanto, morrer assim de repente é comum. Digo morrer um pouco, morrer por dor de dentro. Morremos quando alguém nos ofende. Morremos quando alguém nos trai. Igualmente morremos um bocado quando alguém morre de verdade. Já vi tantos dos meus irem embora sem que sequer me tivesse sido dado o direito de me despedir. Morremos quando um amor se vai, quando um sonho despenca da nuvem, quando uma esperança se dissolve no ar bem na nossa cara feito bola de sabão. Morremos, sim, a cada dor, a cada insatisfação, a cada frustração. E nos diluímos em lágrimas por cada uma dessas mortes até que revivemos, como fênix. Meio sem penas, com as asinhas chamuscadas, capengas, revivemos, respiramos, arregaçamos as mangas, tomamos calmantes e seguimos. Nem sei se em frente, mas por onde se possa caminhar ou navegar, já que é mesmo preciso.
Assim, já morri muitas vezes. Ao ver meu pai num caixão, ao velar amigos e até mesmo, quando criança, ao pensar na morte como coisa certa para a vida – que coisa mais errada isso, meu Deus! – a única certeza que me foi passada foi sobre o fim. E meus começos todos, pensava¿ Sofri a dor da ideia de saber os meus mortos futuros, cadáveres adiados. Chorava, esperneava em vão. Depois vieram de fato as mortes menores. Amigas me trocaram por outras. Casamento se foi. Novos amores bonitos também acabaram e a cada vez que isso tudo ocorreu, morri. Fui assassinada em meus sonhos mais puros e nada há de mais belo num ser assim efêmero do que seus sonhos. Vi-os mutilados, arrebentados, cacos de vidro dispersos no chão. Juntei, colei, tão longe da perfeição. Acho que muito mais colei a mim, pedaço a pedaço, para renascer. E renasci assim, meio morta-viva. Reaprendi a sorrir enquanto no chuveiro, chorava. Agarrei-me no sorriso dos outros, peguei carona na alegria alheia, maquiei minha face e minha alma e saí para dançar. Encontrei a vida e a morte sempre juntas porque são, de fato, amigas inseparáveis.
Vivo hoje a maturidade. Ainda consigo conceber a ideia de sonho. Uns morreram, outros nasceram. Nenhum reviveu mas, os trago comigo nos poemas que escrevo, naquilo que penso quando o mundo já dormiu, no que marquei em minha vida, essa breve passagem.
Marquei lençóis com meus bordados, na juventude. Monogramas que o tempo rasgou. Frisei rostos em papel fotográfico que haverão de amarelar um dia. Teci casaquinhos para os filhos que cresceram e ganharam asas. Costurei cortinas para a casa que também morreu com o amor. Pousei beijos em faces tantas e com tanto carinho, porém alguns ficaram fixos apenas na minha memória que não morre. Tatuei um amor, um sonho, que hoje é saudade. Minha rosa vermelha no pé direito representa hoje todas as flores que também – atitude de gente que quer se fazer eterna – fixei na terra, ainda que ciente de sua efemeridade. “Tudo passa sobre a terra.” É frase literária e certeira. Eu também vou passar, igual ao rio que se perde no mar.
Em algum dia eu também vou morrer, meu corpo se tornará adubo para flores, como no filme e, assim como tive desejos para a minha vida, tenho alguns para este dia.
- Tragam-me flores, muitas. Coloquem sobre meu corpo os poemas que escrevi, ao menos alguns deles. Fotografias em que esteja sorrindo mostrando que embora morta muitas vezes, meu rosto tentou disfarçar e concebeu vida a outros. Chorem tudo o que tiverem que chorar lembrando que eu mesma fui sempre a rainha das lágrimas. Só não sofram além da conta. Para quem em vida tantas vezes foi assassinada, estar a caminho do além não deve ser coisa ruim. E vou em paz! É assim que penso e pronto! Mas uma coisa, deixo dito, não façam: Não me coloquem meias e não cubram meus pés. No meu pé direito há uma flor. A mais importante de todas. Muitos em vida sequer a perceberam, mas no dia de meu velório, deixem minha rosa à mostra. Somente essa flor é essencial. Se quiserem dizer algo, digam um trecho de “O pequeno Príncipe”: “Se você ama uma flor da qual no mundo há um exemplar somente, isto basta para que sejas feliz quando a contemplas.” Essa é minha oração de cabeceira. E que os que ficam não se deixem morrer tão fácil. Amém.