22 de dezembro de 2008

De tudo o que restou, muito mais me falta.

De tudo o que restou, muito mais me falta.

(Roseli Broering)

Eu não sei exatamente há quantos anos, mas penso que uns 29 ou 30. Nesse passado esquecido por números de mim, casou-se um de meus irmãos. Era um sábado frio e de fortes ventos. Lembro-me que, com muita dificuldade financeira, fomos, eu e minha mãe, ao salão de beleza. Meus cabelos eram compridos e foram, pasmem! , desarrumados, desalinhados. Essas sensações que me vêm de repente são mesmo esquisitas. Se fecho meus olhos, vejo-me lá e sinto meus cabelos voando, esticados e pesados, feios. Mas, como admirava a noiva! Era uma miniatura de mulher, batia abaixo de meus ombros e estava iluminada. Meu irmão num terno azul-marinho, esbanjava alegria. Casamento em casa, como foram todos os de nossa família. Os convites traziam: “Após a cerimônia religiosa, os convidados serão recepcionados na residência dos pais da noiva.” Aquilo era lindo de ler. Não havia pompas nem grandes decoradores. A simplicidade era a lei e os sonhos que passavam a pertencem a todas as moças, eram também meus. Um dia também me casaria, teria o meu convite, noivinhos em cima do bolo, um vestido branco e um véu longo com gotinhas de cristal, preso a uma grinalda linda. Muitas damas e pagens igualmente sonhava, alegrias e sorrisos fartos ante a nova vida que estava, em algum lugar, por vir. Tudo isso eu pensava enquanto admirava as alianças de meu irmão e minha cunhada, sua circularidade – o “para sempre” que eu ouvira deles diante do padre.
Naquele tempo já estava registrada em mim a marca da mulher que, em sua costumeira solidão, pensava e refletia, pois esses são verbos de infinitas significações. A vida passa tão depressa, hoje eu sei. Nem me atrevo – para não sofrer talvez – contar aqui o que foi feito de todas as promessas daquele dia proferidas pelos noivos e testemunhadas por nós, por mim também no meu silêncio observador.. os mesmo olhos que se prometeram brilhar na mesma direção para sempre, acenderam-se depois em outros rumos. Promete-se diante da platéia e convida-se para a festa sentimentos e ações que nem sempre se consegue cumprir, essa é a verdade. Como ninguém conhece o futuro, nada se deve prometer, jamais, sob pena de sermos nós, os prometedores, os que mais sofreremos pois a vida está aí para quebrar as regras que nós mesmo criamos para ver os olhos dos que amamos brilharem. Tolas ilusões. O jogo é perigoso e ninguém nos indica quais as armadilhas estão armadas, nem onde. Os amantes embarcam na canoa furada conduzida pela vida – disfarçada motorista de quepe e divisas, com chifres invisíveis.
Também eu, no meu tempo casei-me. Lembro do gosto do bolo. Não houveram noivinhos, era um laço de fitas delicado e bonito, cor-de-rosa. Cortei-o auxiliada pelo homem amado e posso afirmar que aqueles sorrisos que ficaram lacrados no papel fotográfico eram mesmo nossos, e verdadeiros! Foi o bolo mais bonito da minha vida. Porém nem só de confeitos sobrevivem os casamentos ou perpetuam-se os sonhos. Fomos os noivos – as fotografias não mentem – e também tivemos nossas alianças que se perderam ao ficarem, juntas, guardadas no cofre. Estranho: perdeu-se o objeto ao ser guardado com chave e segredo... Promessas, juras, assinaturas, certidões, nada fez com que aquilo que de mais importante havia, permanecesse. Sem o amor, vão-se os sonhos e os objetivos partem-se.
Hoje, mais de 25 anos depois, ainda guardo o vestido, a grinalda amassada, os buquês das damas. Uma colher de pau quebrada, alguns sobreviventes pratos do jogo de jantar porcelanado, travessas que o tempo não consumiu, as fotografias num álbum amarelado. Guardo também a lembrança dos rostos que ali estavam com seus olhares a nos abraçar e que a morte já levou – meu pai, minha avó, alguns tios – silêncios presentes para sempre. Também mutilo a cada dia o que sobrou de nós, que estamos vivos hipocritamente a agradecer ao que sobrou. De tudo o que restou, muito mais me falta: os abraços que deixamos de trocar, as promessas não cumpridas, as ofensas vividas e caladas, as certezas mentirosas de que tudo algum dia podia melhorar. De tudo o que restou, muito mais é nada, nada. São rugas e cabelos brancos, amarguras e mágoas tantas que papéis e canetas jamais serão suficientes para que o registro acabe. Ficaram as sensações e elas são minhas. Outras vezes, em vão, tentei amar nem que fosse só pelo amor em si, sentimento tão completo, tão uno e complexo que movimenta nervos, sangue e as próprias palpitações de nossa vida. Também não obtive sucesso. Mais mágoas vieram, outras separações e a indescritível sensação horrível de ter tentado de novo e errado outra vez!
Não ouso mais perguntar a ninguém a porção de dor que poderia ser dividida comigo. Dores que se tenta partir, são somadas, isso sim, quanto mais mexemos nelas, mais nos sangram. Atira um torrão de terra, leitor, na água aparentemente límpida com lodo no fundo para ver o que acontece... Meu irmão, minha cunhada, eu e meus amores somos águas paradas. Deixai-nos quietos. O lodo de minha solidão merece ficar em seu lugar, estagnado. No fundo. Na superfície, quero ser água mansa, límpida, talvez para ser nova a cada dia.
Sempre que ouvir tocar a “Ave Maria” em latim, vou chorar e, paradoxalmente, esse choro bonito e emocionado é meu mais cruel pesadelo real, pois vive lá dentro, onde a solidão faz morada e, nessa casa, dessa moradia, só quem conhece os recantos sou eu.

Até o ano que vem!